14 março, 2007

Japão serve baleia em merenda em luta por tradição


Os japoneses sofreram um severo embaraço, recentemente, quando tiveram de reduzir sua temporada anual de caça à baleia na Antártida depois que um incêndio danificou gravemente seu principal navio, causando a morte de um tripulante. Os 343 mil galões de combustível que o navio transportava ameaçavam vazar para as águas impolutas da região, o que representaria um potencial desastre de relações públicas.
Algumas semanas antes, mais de metade dos países membros da Comissão Baleeira Internacional (IWC), liderados por países que se opõem à caça de baleias, tais como Austrália, Estados Unidos e Reino Unido, boicotaram uma conferência organizada pelo Japão em Tóquio para discutir a retomada da exploração comercial das baleias.
Por que o Japão enfrenta esses choques anuais com as embarcações de grupos ambientalistas ocidentais que se opõem à caça às baleias? Por que o país se sujeita ao opróbrio que sua chamada "exploração científica" das baleias suscita de parte dos mesmos países com os quais Tóquio proclama compartilhar valores? De todas as possíveis causas de desacordo, por que desafiar os Estados Unidos quanto a exatamente essa?
Afinal, a demanda por carne de baleia é extremamente baixa, no momento. Mesmo em uma cidade como Ayukawa, uma pequena comunidade no norte do país, acomodada em uma península que se estende pelo Oceano Pacífico e sede de uma tradição baleeira centenária, as autoridades vêm enfrentando dificuldades para preservar a tradição de comer carne de baleia, tornando-a parte da merenda escolar. Bolinhos de carne de baleia fritos com ketchup eram parte do cardápio da escola local em uma sexta-feira recente.
"Acredito que seja a nossa tradição cultural", disse Natsumi Saito, 15 anos, aluno do primeiro colegial. "Foi a caça à baleia que tornou esta cidade famosa".
Para o Japão como um todo, a exploração da baleia representa questão muito mais complicada, ligada de maneira complexa às relações do país com o Ocidente e, em especial, com os Estados Unidos. Não surpreende, portanto, que a oposição estrangeira à exploração da baleia tenha despertado sentimentos nacionalistas no Japão. O que é muito menos divulgado é a maneira pela qual os Estados Unidos instigaram, ao menos parcialmente, a obsessão nacionalista dos japoneses para com a exploração da baleia, inicialmente encorajando os japoneses a caçar o animal e promover o consumo de sua carne, nos anos do pós-guerra, e mais tarde os instando a parar.
Tóquio vem liderando uma campanha mundial para defender o argumento de que o país tem o direito de administrar os recursos naturais como preferir, e que carne de baleia é parte de sua cultura tradicional. O confronto quanto à exploração da baleia surgiu quando o movimento ambientalista, liderado por norte-americanos, ganhou influência e começou a propagar a crença de que espécies ameaçadas de animais deveriam ser protegidas, e que algumas das mais evoluídas dentre elas, como as baleias, não deveriam ser caçadas de maneira alguma.
Sob uma proibição internacional à caça da baleia, imposta em 1986 pela IWC, o Japão foi autorizado a conduzir exploração limitada e científica de certas espécies do animal, para fins como avaliar a população das espécies e acompanhar seus movimentos, e a vender como alimento a carne das baleias abatidas para essas finalidades.
O Japão vem defendendo desde então a posição de que os seres humanos deveriam ser autorizados a consumir qualquer animal, desde que a caça ou pesca seja sustentável. Para estabelecer o ponto, o Japão envia navios baleeiros às distantes águas internacionais da Antártida, disse Tetsu Sato, professor de ciências ambientais na Universidade de Nagano.
Em um mundo no qual os recursos marinhos estão em queda, estabelecer esse princípio é essencial para a segurança alimentar do Japão e para a administração dos recursos naturais, em longo prazo, ele afirma. "Precisamente porque os ataques às baleias atraem tanta atenção mundial, o Japão não pode arcar com o custo de perdê-los", disse Sato, que apóia a exploração comercial das baleias.
No ano passado, o Japão matou 1.073 baleias minke, cuja carne terminou em restaurantes, supermercados, refeitórios escolares ou não vendida. A maioria dos biólogos acredita que certas espécies de baleias, entre as quais as minke, não só se recuperaram mas estão prosperando, no momento. Restam desacordos, no entanto, quanto a poderem ou não ser exploradas de maneira sustentável. Mas os argumentos relacionados à administração de recursos têm peso inferior ao dos argumentos culturais.
"Eu temia que nossa cultura alimentar fosse morrer, e por isso começamos a servir carne de baleia nos refeitórios de escolas", disse Shigehiko Azumi, que era prefeito de Ayukawa quando a proibição à exploração baleeira entrou em vigor. Pouca gente nega que a exploração da baleia seja parte da cultura da cidade. Mas as opiniões se dividem quanto à importância dessa atividade para a cultura japonesa como um todo.
Historicamente, os pescadores das cidades costeiras caçavam baleias nas águas próximas ao país. Mas as coisas mudaram depois que o comodoro Perry chegou ao Japão com seus uma frota norte-americana e forçou o país, que se mantinha isolado, a abrir seus portos, na década de 1850. Na época, os Estados Unidos usavam lâmpadas alimentadas por óleo de baleia, e parte da missão de Perry ao Japão era garantir os direitos dos baleeiros norte-americanos no Pacífico.
À medida que o Japão se abria para o mundo, adotou técnicas e modelos de embarcações baleeiras norte-americanas e norueguesas. Algumas cidades costeiras se tornaram portos baleeiros, como Ayukawa, onde a Toyo Whaling começou a operar em 1906.
O pico do consumo japonês de carne de baleia foi de 226 mil toneladas, em 1962; depois disso, começou um declínio que reduziria o total a apenas 15 mil toneladas em 1985. Os japoneses que defendem a exploração da baleia dizem que a demanda não caiu de fato; as cotas cada vez mais rígidas da IWC é que forçaram uma redução do consumo.
Já os oponentes alegam que os japoneses abandonaram o consumo de carne de baleia quando o país enriqueceu e alternativas mais atraentes e acessíveis de alimentação surgiram. Mas o governo decidiu defender a exploração da baleia recorrendo ao argumento de que ela era parte da herança cultural do país. Esse argumento se provou convincente em uma nação em que muitos sentem que boa parte da cultura tradicional se perdeu no confronto contra os Estados Unidos, e na absorção dos valores norte-americanos que surgiu depois da derrota japonesa.


FONTE: TERRA